terça-feira, 20 de maio de 2014

O II BALAIO DAS ARTES ou

Sobre construir uma Clínica Ampliada da Arte [1]
                          
O primeiro encontro da Rede dos Fazedores de Arte aconteceu em outubro de 2012, entusiasmado por artistas-oficineiros da atenção psicossocial. A princípio o que movia era a inquietação sobre este novo lugar que ocupavam. Na cidade de São Paulo, já são contratados artistas para integrar as equipes de saúde mental, no sentido de maior colaboração nas produções estéticas dos equipamentos.

A Rede é um encontro potente de pessoas que desbravam tempo e espaço para esta iniciativa. E todos nós, cada um de nós que vai entrando compõe com essa força intensiva, com essa vontade de outros mundos. Movimento autônomo de trabalhadores que tem como intento pensar e agir a articulação entre arte e saúde, fazendo desse movimento, um movimento social. Não inventamos a roda, mas sabemos bem dos aprisionamentos cotidianos.

Hoje participam da Rede tanto artistas-oficineiros como profissionais de outras especialidades. Espaço aberto de encontro para todos os trabalhadores em saúde que se interessem em movimentar-sacudir conceitos e práticas estéticas como modo de produção de saúdes e subjetividades, como reinvenção de territórios e ocupação dos espaços da cidade.

Sabemos que, historicamente, a interlocução entre cuidados em saúde e produção estética já tem caminho construído. Porém, vivemos uma conjuntura macropolítica que pede um constante rearranjo de olhares e posturas micropolíticas. Nos interessa desde como somos nomeados até a qualidade intensiva das relações. Técnico? Artista? Auxiliar Técnico? Oficineiro? Especialistas de quê?

E como se tem experienciado a tal integralidade, equidade, a tal humanização? Acreditamos? Neste sentido, o II BALAIO DAS ARTES -Mostra de Artes da Rede de Atenção Psicossocial é um gesto de esforço coletivo que propõe maior visibilidade às produções e processos estéticos dos serviços de atenção psicossocial. O II BALAIO pretende-se uma força ativa para fazer-inventar o que desconhecemos: novas linguagens, novos caminhos e caminhares, novos discursos, novo corpo... deslocar fronteiras de percepção e afecção. Desejo e necessidade de criar novos arranjos cotidianos que vitalizem conceitos preconizados pelas novas políticas em saúde. Afinal, uma ideia de política só se transforma efetivamente em política pública quando ganha corpo social.

A força está na postura ética, estética e política que aprendemos a imbuir em todas nossas ações, ideologias e micropolíticas. A tecnologia de relação com a Vida. A vida que pulsa nos corpos e linguagens e nosso compromisso, enquanto trabalhadores e cidadãos, de inventar e espremer os sucos impossíveis de nossas práticas de encontros. “Sejamos realistas, queiramos o impossível” [2].

E quando falamos em arte, pensamos na experimentação estética enquanto exercício de liberdade, exercício das nossas máximas potências de agir. Experimentação estética que são as conexões e produções criadas em diversas linguagens artísticas e que é também a qualidade intensiva das forças produzidas nos encontros clínicos. Uma clínica-encontro que se faz a partir das relações e não diagnósticos.

Encontros que se fazem como obra de arte, pois que o artístico não está no produto das coisas, mas sim, nos processos de tornar visíveis e dizíveis os desejos, quando começamos pelo meio, entre pulsações, em experiência.

Nossos gestos e esforços são a expressão de um militantismo que acredita na mudança de paradigma. Nos distanciamos do paradigma da ciência para potencializar um movimento de luta antimanicomial que se afirma pelo paradigma da arte. Uma luta contra todos os aprisionamentos engendrados como verdades e que excluem deficientes, loucos, drogaditos, velhos e crianças a favor de uma naturalização capitalista de assujeitamentos.


            Diz o poeta e dramaturgo Bertolt Brecht:

Desconfiai do mais trivial, 
na aparência singelo.
E examinai, sobretudo, o que parece habitual.
Suplicamos expressamente:
não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,
pois em tempo de desordem sangrenta,
de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,
de humanidade desumanizada,
nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar.

(Nada É Impossível De Mudar)

Tudo isso para dizer que, por uma Clínica Ampliada da Arte, precisamos nos posicionar. O movimento coletivo pode ser uma de nossas grandes ferramentas de resistência aos valores instituídos, convocando mudanças nos regimes de sensibilidades.

Que nossos braços e pernas - materiais e imateriais - levantem cartazes e impunham suas armas! Fazer macro e micropolítica sem misérias e com alegria. Somos loucos, e não somos poucos.

“Se não nos deixais sonhar, não os deixaremos dormir” [3].

   
Boa Mostra a todos!


Priscila Tamis Psicóloga e Arteira                     




[1]  SANTOS, Daniela Patrícia; TAMIS, Priscila. Vídeo-ensaio em ecologia urbana: políticas narrativas e problematizações no fluxo corpo-cidade-saúde. Vídeo e texto apresentados no III Encontro Corpocidade, Cidade e Cultura: experiências metodológicas. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2012. 


[2]  Frase que se via nos muros da França em Maio de 1968.

[3]  Frase que percorreu as últimas manifestações sociais da Cataluña, na Espanha. GALEANO, E. El derecho al delírio. https://www.youtube.com/watch?v=Z3A9NybYZj8

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Carta aberta


São Paulo, 22 de abril de 2014. 


Carta aberta 


Considerando que o CAPS é fruto da reforma psiquiátrica, conforme lei 10216/2001, e que por isso deve conceber o sujeito em seu meio, sem isolar sua psicopatologia do contexto em que ele se encontra; 


* Considerando os princípios do SUS (Sistema Único de Saúde), que entende o CAPS como o núcleo de uma nova clínica, produtora de autonomia, responsabilização e protagonismo; 

* Considerando os princípios do SUAS (Sistema Único da Assistência Social), que incentiva o controle e monitoramento de seus equipamentos praticado pelos usuários dos serviços; 
Considerando os preceitos previstos pela RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) de articulação de rede intra e intersetorial e também a definição de protagonismo enquanto "atividades que fomentem a participação de usuários e familiares nos processos de gestão dos serviços e da rede, como assembleias de serviço, participação em conselhos, conferências e congressos, a apropriação e a defesa de direitos, e a criação de formas associativas de organização"; 

Considerando os objetivos das Irmãs Hospitaleiras, que preconizam a oferta de saúde integral, com um caráter eminentemente humanizador, qualidade relacional e respeito pelos direitos da pessoa; 

* Considerando os princípios da Redução de Danos, que relembra que o cuidado do usuário de drogas não considera apenas os danos que as substâncias causam a ele, mas também os danos causados pelo contexto sociocultural e político no qual ele se insere; 

Considerando que a população em situação de rua compõe um grupo de excluídos de direitos sociais e que tal exclusão favorece o uso problemático de drogas; 

Nós, trabalhadores do CAPS AD III Complexo Prates, entendemos ser de nossa competência o desenvolvimento de ações de empoderamento dos usuários. Trata-se do cumprimento de todos os princípios citados acima e do exercício de um papel que nos foi dado. Se o fazemos, não é por escolha pessoal ou institucional, mas atuação ética prevista por lei no desempenho profissional da equipe técnica de um CAPS. 
Quando nos posicionamos em relação ao não uso do jaleco - que nos distancia, desiguala e rotula; quando defendemos a nossa presença em conflitos de usuários com a GCM por acreditarmos que “quando a polícia entra, não precisamos sair"; quando incentivamos os usuários a ocupar espaços de luta pelos seus direitos; em todos esses casos, estamos reafirmando que esse fazer não é apenas dos trabalhadores que o praticam, mas das instituições que representam nesse exercício, visto que nenhuma defende o fim dos direitos humanos ou a criminalização da dependência química. 

Desta forma, reiteramos nosso repudio a qualquer inibição de ações relacionadas a esta prática, bem como nossa indignação frente a qualquer tipo de punição dispensada aos
profissionais que as executam. Dentre tantas outras situações de represália, temos o exemplo recente do afastamento imposto da gerente deste serviço após apresentar postura condizente com os pressupostos elencados e com a opinião da equipe. 

Em nome do sofrimento causado pela não garantia do direito a voz, tanto de usuários como de trabalhadores, solicitamos apoio e incentivo para que as atividades aqui mencionadas sejam concretizadas e sustentadas pelos serviços que, idealmente, as propõem. 

Assinam esta carta, de forma unânime, os trabalhadores do CAPS AD III do Complexo Prates.

quinta-feira, 27 de março de 2014

res-posta


Um dia pensei sobre quem seria o inimigo do corpo mediante a tantos atravessamentos que submetem as subjetividades, as enquadram e rotulam. 

Tais atravessamentos são os que operam a ordem, a normalidade e demais conjunturas que regram, por vezes de maneira humilhante e veladamente gritante, os viveres. A pergunta não carece que se responda, antes, que se perceba, e ao fazê-lo, deixar que a percepção transborde certos contornos que, ao invés de formar - dar forma, tornam-se prisões - conformam. 

Posso tentar seguir pensando no sentido de uma (in)certa integralidade e de como as possibilidades "Trans" evocam os "comos" disso de existir. E o "trans", a transdisciplinaridade - ou - 'transa simbiótica' das práticas,saberes e conceitos que con-vocam a possibilidade de um ambiente. 

O ambiente ou con-texto significa as ações que se justificam na integração disso que é a construção do comum, ou quem sabe do in-comum, que exigirá um alongamento mental que promova rupturas, que "pire" (incendiariamente falando), os modos operativos que promovem as tais falas sem sujeito: "foi sempre assim", "isto não tem jeito" e assim por diante. 

As tais falas sem sujeito, as falas que sujeitam, submetem e des-pontencializam são responsáveis pelo esvaziamento do ânimo, da anima e pelo entorpecimento que mantém o status-quo como algo sem passado e sem uma possibilidade de futuro inventável. 

Vitor Pordeus e o contexto que significa as ações dos trabalhos coletivos desenvolvidos no hotel da loucura e na UPAC são, das muitas respostas, uma  possível a minha questão inicial. Resposta que minimiza a impressão negativa de que  muitos de nossos pensadores - ou - mestres da cultura popular jazem no esquecimento e por vezes parecem nunca ter existido. 

Há um corpo, um corpus que resisti e espera pela sua primavera.  



Anderson Gomes
ArteiroOficineiroArteducador
no CAPS AD - VL. ARAPUÁ

sexta-feira, 7 de março de 2014

O que a festa nos ensina?



O que a festa nos ensina? A festa é como uma batalha, uma fábula – todos os corpos des-ordenados para um fim, em riste, moventes, flutuantes em torno de si – A festa almeja a si mesma. O que a festa nos ensina? A festa engendra e tem engendrado em seu bojo todo o aspecto pluridimensional que pode ser diluído – ou – definido(?) em conceitos; sejam eles poéticos, políticos ou terapêuticos. Seu sentido social, sociável, socializante, trans-atlante... A festa! O que a festa nos ensina? A festa convoca, convoca o corpo, convoca a um pacto, a integração – a festa é um todo. Não se pode estar na festa pela metade, a festa exige o inteiro – o que a festa pode nos ensinar? O que podemos aprender com a festa? A festa, o povo da rua a rua do povo – o que manifesta o corpo que festeja? Que existência inaugura? Algures, a festa é a alvorada do corpo que se faz corpo no ponto de intersecção entre o horizontal e o vertical, o corpo plana e molda o espaço em valores plásticos – a prática do corpo revolvida em plástica que torna o cotidiano "extra" e acessa o impossível. A festa afeta por que o corpo é porto e é mar por onde se navega, é nau e navegante é flecha e alvo. Não se mensura as desmedidas e latências destes acontecimentos, pois, enquanto “acontessência” o que “é” é por que “é”. Tal consequência nos coloca não mais no plano de quem contempla a paisagem, mas de quem já não se distingui de sua condição.


Anderson Gomes
ArteiroOficineiroArteducador
no CAPS AD - VL. ARAPUÁ


sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

eu - preta, pobre e crackeira

eu
preta, pobre e crackeira

Hoje estava na rua Frederico Abranches, zona central de SP, no Complexo Cracolândia. Caminhava sozinha em direção ao metrô Pedro II. Peguei a passarela. No meio dela dou de cara com um amontoado de pessoas que rodeavam outras três. Dois homens imobilizavam outro que estava estendido no chão.

- O que aconteceu?

- O cara roubou a carteira dele!

O “cara” era um homem negro, alto, vestido de um jeans. Naquele momento o “cara” era um preto, pobre, crackeiro que tinha roubado uma carteira e tinha agora o rosto esfolado no chão.
“Ele” segurava os braços do “cara” e o pressionava com as pernas contra o chão, com a colaboração de um outro justiceiro qualquer.

- Moço, você pegou sua carteira?

- Eu tô com a carteira!

- Então larga o “cara”!

Naquele momento o “cara” sentia na pele toda revolta e miséria política-afetiva que o corpo multidão pode portar.
Uma garota se aproximou com dedo em riste na minha cara.

- Você é uma escrota!

Aí começaram os instantes dos mais oprimidos que já vivi – porque naquele instante eu já era outra. A pele escureceu, a grana da sobrevivência escapou e o crack me invadiu. Bem assim. Nunca, em nenhuma situação, em nenhum estudo, movimento social ou poéticas homônimas senti isso.

Ela sentia ódio. Me olhou no olho, como se fosse a última coisa que faria na Terra. E repetia.

-Você é uma escrota!

Ela cada vez mais perto.
Ao mesmo tempo, um homem branco limpinho, de uns cinquenta anos, aproximou-se mais e gritou:

-Você é cúmplice desse cara!

E outro qualquer – nisso meus olhos já quase não enxergavam – aproximou-se também.
Ele tá contendo o cara pra chamar a polícia! – esclareceu mais outro justiceiro.

Consegui que a roda se virasse pra mim. Quase todos ali me rodeavam. E aí o vômito chegou à garganta, engoli uma frase qualquer, dessas que uma branca-intelectual-estudada-militante consegue articular. E senti cada vez mais perto todos aqueles olhos cheios de ódio, aqueles corpos agressores, aqueles dedos na minha cara. A polícia já estava ali, em cada um deles.

Eu era a preta, pobre, crackeira. Sem cristianismos. Senti o que jamais senti na pele. Nenhuma bomba de gás lacrimogêneo me fez sentir assim. Bem assim. Eles estavam prontos pra rasgar minha cara no concreto, como faziam com o preto, pobre, crackeiro que bateu carteira. Eu roubava a dignidade que eles sentiam em reprimir. Bem assim. A força de multidão que os impulsionava, a força da alienação do efeito massa que pode acontecer quando um monte de gente se junta seja para o que for.  Pelo menos seis pessoas estavam a menos de um palmo de mim.E eu, preta-pobre-crackeira-escrota senti a violência da polícia.

Eu não apanhei. Porque me calei, deixei o “cara” já de pé, mas ainda encurralado, virei as costas e segui. Aos soluços e engasgada com o vômito que não saiu. Mais ou menos cinquenta minutos  - na intensidade felina dos mais ou menos cinquenta anos daquele senhor - de choro com soluço no metrô, na rua, no ônibus. Do afeto agonizante e humilhado não privei nenhum passante.

Afinal, a violência é de quem?

O drama do protagonista que é sempre o primeiro a agonizar a vida que se vive.

Hoje eu não subverti nada, não construí nada, pouco me manifestei. Fui gente covarde com medo de apanhar. Fui gente que quer viver e não se orgulha em sangrar. Fui gente cansada, rasgada no peito.

Nesse dia que fui branca e fui preta, que fui classe média-intelectual e fui crackeira, eu só queria, como quero todos os dias, que toda a gente pudesse ser gente nessa cidade.

Caros repressores,

Caros ressentidos,

Caras pessoas que reproduzem a lógica de massacre,

Diante de toda bomba e de todo dedo em riste,

Diante de todo medo que senti,

Posso dizer agora, neste mesmo dia de hoje, que vossa força reativa encarnou neste corpo que vos fala a máxima potência da indignação. Senti o que jamais vivi na minha vã filosofia militante. Senti no corpo o ódio da farda que vocês vestiram. Vocês ameaçavam com humilhação e estupidez inúteis a vida daquele homem. Vocês ameaçaram a minha vida.

Luto com tudo o que posso contra vossas fardas.

Luto contra as minhas fardas.

E se hoje pelo meio do dia eu não falei

Pela noite escrevo e publico.

Quando a gente se expõe ao acontecimento ele acontece.

Também tenho minhas armas.

(quais modos de existência estamos produzindo nessa cidade?)

Toda força aos que lutam!


Priscila Tamis